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Tarifa zero custa R$ 78 bi e é viável sem imposto novo, diz estudo

Foto:Fernando Frazão/Agência Brasil

Pesquisadores da UnB, da UFMG e da USP apresentam cálculo inédito do custo da gratuidade no transporte urbano e propõem revisão do vale-transporte para financiar o novo modelo.

Congresso em Foco

27/11/2025 7:00

O Brasil vive uma aparente contradição no transporte urbano. Ao mesmo tempo em que os sistemas de ônibus perdem passageiros, encarecem e acumulam déficits, o país lidera o mundo no número de cidades que já adotaram a chamada tarifa zero. Agora, um novo estudo estima em cerca de R$ 78 bilhões ao ano o custo para levar a gratuidade a nível nacional, nas cidades com mais de 50 mil habitantes, e aponta que isso pode ser feito sem aumento de impostos e com financiamento estável.

Produzido por pesquisadores da UnB, UFMG e USP, o relatório “Caminhos para a Tarifa Zero” apresenta a estimativa mais precisa já feita sobre o custo da gratuidade e propõe um novo arranjo institucional para o setor. O documento integra a pesquisa “Tarifa Zero e suas possibilidades de expansão no Brasil, financiada pela Frente Parlamentar em Defesa da Tarifa Zero e sediada no Instituto de Ciência Política (IPOL) da UnB. A pesquisa também conta com os apoios da Fundação Rosa Luxemburgo e da Rede Nossas.

Veja o estudo.

Movimentação de passageiros de ônibus em São Paulo.

Movimentação de passageiros de ônibus em São Paulo.Zanone Fraissat/ Folhapress

“Valendo-se de uma metodologia de cálculo bastante abrangente e sofisticada, o estudo oferece uma proposta capaz de desenhar um cenário concreto para a implementação da política de tarifa zero em âmbito nacional, tudo isso partindo de uma análise da conjuntura do sistema de transportes urbanos no Brasil”, explica o professor de Ciência Política da UnB e coordenador do Observatório das Metrópoles em Brasília, Thiago Trindade, um dos autores do estudo – que também é assinado por Letícia Birchal Domingues (UnB), André Veloso (ALMG), Roberto Andrés (UFMG) e Daniel Santini (USP).

Trindade destaca que o ponto crucial e inovador do estudo foi a identificação de uma forma de financiamento sem a necessidade de se criar um imposto novo e sem onerar o orçamento da União. “Nossa proposta de financiamento está na revisão do vale-transporte. O modelo que apresentamos propõe uma contribuição fixa das empresas, custeada pelo empregador, que deve gerar a receita necessária – cerca de R$ 80 bilhões”, declarou o professor ao Congresso em Foco.

Crise persistente: queda de usuários, mais carros e custos crescentes

Entre 2013 e 2023, o transporte coletivo perdeu 30% de seus passageiros. Nesse mesmo período:

  • a frota de carros aumentou 44%;
  • a de motos cresceu 58%;
  • apenas São Paulo reguistrou perda de quase 1 bilhão de passagens em dez anos.

Com menos receita e despesas maiores, o serviço se torna mais caro e menos eficiente, alimentando um ciclo de deterioração. Sem mudança estrutural, o sistema, segundo o estudo, “tende ao colapso financeiro e operacional”.

Número de usuários de transporte público tem caído ano a ano nas maiores cidades brasileiras.

Número de usuários de transporte público tem caído ano a ano nas maiores cidades brasileiras.Reprodução/Relatório Caminhos da Tarifa Zero.

Brasil já é referência global em tarifa zero

Em meio à crise, multiplicam-se as experiências locais de gratuidade. Em 2025, conforme o estudo, 137 cidades adotam tarifa zero plena – o dobro de dois anos antes e o maior número do mundo.

O caso mais consolidado é o de Maricá (RJ), onde a frota pública gratuita multiplicou por 15 o número de passageiros desde 2015 e se tornou ativo político central. Em diferentes regiões, prefeitos de variadas orientações ideológicas passaram a aderir à proposta, ampliando seu alcance nacional.

Evolução no número de cidades com tarifa zero no país.

Evolução no número de cidades com tarifa zero no país.Reprodução/Relatório Caminhos da Tarifa Zero.

Quanto custa tornar o transporte gratuito?

O custo atual para operar os sistemas urbanos de ônibus no Brasil é de cerca de R$ 65 bilhões anuais. Tornar o serviço gratuito para cidades com mais de 50 mil habitantes elevaria esse valor para R$ 78 bilhões, beneficiando 124 milhões de pessoas. Se forem incluídos metrôs, trens e VLTs, a despesa chegaria a R$ 90 a R$ 93 bilhões – ainda inferior ao gasto anual do país com acidentes de trânsito, estimado em R$ 136 bilhões.

O estudo compara a gratuidade universal com o modelo focalizado para inscritos no CadÚnico, normalmente apontado como mais “econômico”. Os números mostram o contrário:

Modelo focalizado

  • Custo: R$ 58,6 bi
  • Público: 24,4 milhões
  • Custo por usuário: R$ 1.200/ano

Tarifa zero universal

  • Custo: R$ 78 bi
  • Público: 124 milhões
  • Custo por usuário: R$ 827/ano

Ou seja: o modelo focalizado em um público restrito custa 75% do valor total, mas atende apenas a um quinto da população e é 30% mais caro por pessoa. Isso ocorre porque o sistema mantém a estrutura atual, bilhetagem privada, catracas, fiscalização e remuneração por passageiro, justamente os elementos que elevam custos e reduzem a transparência.

Estimativa de custos por capital.

Estimativa de custos por capital.Reprodução/Relatório Caminhos da Tarifa Zero.

 

Falta de dados é o maior obstáculo

O estudo aponta que o país não dispõe de dados completos e confiáveis sobre seu próprio sistema de transporte. Informações fundamentais, como bilhetagem e quilometragem, são opacas, fragmentadas ou controladas por concessionárias, o que impede auditoria e planejamento.

Para enfrentar o problema, os autores propõem a criação do DATASUM, uma plataforma nacional de informações da mobilidade, nos moldes do Datasus.

Um “SUS da mobilidade”: criação do Sistema Único de Mobilidade

A expansão da tarifa zero exige uma nova estrutura nacional. O relatório detalha o Sistema Único de Mobilidade (SUM), previsto na PEC 25/2023, da deputada Luiza Erundina (Psol-SP), com divisão de responsabilidades semelhante à da saúde:

  • União: coordenação, financiamento e regulação;
  • Estados: integração e planejamento metropolitano;
  • Municípios: operação do serviço;
  • Fundo Nacional de Mobilidade: repasses contínuos e previsíveis.

O SUM prevê também controle público da bilhetagem, remuneração por oferta de serviço e auditoria permanente.

Como financiar sem criar imposto novo

A alternativa mais promissora apontada pelo estudo é substituir o vale-transporte por uma contribuição empresarial inspirada no modelo francês Versement Mobilité. Os pesquisadores propõem a criação da Contribuição para Disponibilização do Transporte Público (CTP), que eliminaria o desconto no salário do trabalhador e isentaria da despesa empresas com até nove funcionários.

Segundo a pesquisa, o modelo manteria 83% dos CNPJs isentos de contribuição, cobrando valor fixo por empregado apenas das médias e grandes empresas. A arrecadação anual estimada é de R$ 80 bilhões, suficiente para financiar a tarifa zero nas 706 cidades com mais de 50 mil habitantes.

Outras possibilidades incluem tributação sobre grandes fortunas, contribuição pelo uso da via e receitas urbanísticas.

Trindade destaca que, nesse arranjo, a ampla maioria das empresas continuaria isenta: “Essa é a grande virada de chave: é uma solução que se paga e resolve o problema central do modelo atual, que é a cobrança por passageiro”.

Impactos previstos: economia, inclusão e meio ambiente

A pesquisa aponta que a tarifa zero traria benefícios diretos à população de baixa renda – em algumas famílias, o transporte consome até 20% da renda – e dinamizaria a economia local, com estimativa de aumento de circulação entre 25% e 36%.

Outros efeitos esperados:

  • redução de acidentes e mortes;
  • queda na emissão de poluentes;
  • mais segurança e mobilidade para mulheres e jovens;
  • maior integração entre regiões metropolitanas;
  • migração significativa do transporte individual para o coletivo – no DF, 41,9% dos motoristas de carro e moto declararam estar dispostos a migrar para o transporte coletivo em caso de adoção da tarifa zero integral (esta informação consta na pesquisa “Mobilidade urbana e desigualdades de acesso à cidade no Distrito Federal”, publicada em outubro de 2025 pelo grupo de pesquisa ObservaDF, também ligado à UnB).

Segundo os pesquisadores, a tarifa zero deixou de ser vista como uma proposta utópica e passou a ser discutida como política pública viável, desde que acompanhada de financiamento estável, transparência de dados, governança nacional, fase de testes e cooperação federativa.

Na terça-feira (25), o ministro da Secretaria-Geral da Presidência da República, Guilherme Boulos, afirmou que o presidente Lula tem simpatia pela ideia de levar a tarifa zero para todo o país, mas ressaltou que é preciso analisar, antes, o impacto da medida nas contas públicas.

“Para você fazer uma política federal de tarifa zero, isso implica você construir uma condição financeira que sustente essa tarifa zero em todo o país. Estamos em uma primeira etapa que é fazer um estudo da viabilidade de uma tarifa zero nacional”, disse Boulos no programa “Bom dia, ministro”, do CanalGov.

Fonte: Congresso em Foco

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